31 de outubro de 2007

Musgueira

Ontem cheguei mais tarde ao Lumiar. Já eram 8 da noite. O frio fez-me desistir de esperar uma boleia do João, ainda algures no centro de Lisboa, e plantar-me na paragem à espera do 108, o único que por ali passa e me carrega Estrada da Torre acima, por 2 ou 3 paragens. Costuma dizer "Galinheiras" em letras grandes e alterna com "via Alta de Lisboa", em mais pequeno. O 777 também é assim, o "via Alta de Lisboa" surge nos intervalos de "Ameixoeira". Aos poucos, começa a ser destino de gentes, a Alta de Lisboa. A palavra "via" dá-lhe ainda uma certa ideia de local por onde se passa, e onde se pode morar, sem ser, no entanto, um destino final, periférico, como o que fica implícito em "Galinheiras", "Ameixoeira", "Senhor Roubado". Penso nestas coisas enquanto escrutino o destino dos autocarros que se aproximam, na esperança do 108 que me tire do frio da rua.

Mas às 8 da noite, descobri eu ontem, passam na minha paragem mais autocarros do que o 108. Às 8 da noite, muitos dos números que por aí andam com destinos centrais como o "Saldanha", transformam-se qual carruagem em abóbora, mudam o letreiro para "Musgueira" e recolhem à garagem para passar a noite. Alguns deles, já fora de serviço, tornam-se nesta altura mais solidários e transportam sem perguntas quem espera para subir a Torre. Foi assim que ontem embarquei num qualquer que dizia "Musgueira". Lembra-me encostas viradas a Norte e manhãs frias de nevoeiro. Fez-me sentir que rumava a um local com histórias e memórias. Senti um certo conforto nisso.

Pergunto-me se qualquer dia os letreiros da Carris trocarão definitivamente "Musgueira" por "Alta de Lisboa", esconjurando assim os antigos fantasmas. Espero que não. Não é o hábito que faz o monge e "Musgueira" é um hábito tão mais bonito.

24 de outubro de 2007

Super

Volta e meia penso nisto.

Nas salas de espera folheio revistas com mulheres de negócios elegantes, com ar de quem acabou de fazer um mês de férias nos antípodas, envergando modelos da última colecção e com o discurso de que não há nada mais importante do que os seus filhos, nada que lhes roube o justo tempo com eles. E gostam também muito de cozinhar, levantar-se às 5 da manhã e ir pessoalmente comprar pão ainda quente para tomarem o pequeno-almoço à mesa, todos juntos, em família. Leio-as com algum sentimento de desadequação. Afinal eu só sou mais ou menos. Sem carreira que me pague ordenado condigno, sem férias que me descansem, sem tempo para os filhos quando chego a casa, um guarda-roupa algo desadequado a qualquer situação que se apresente, e o meu pequeno-almoço é muitas vezes pão de há 4 dias atrás, em torradas, intervalado com a lavagem de dentes do Pedro ou algum outro afazer doméstico matinal. Pensando bem, sou pior que mais ou menos.

Por isso, volta e meia, penso nisto. E quando conseguimos equilibrar o orçamento mais um mês apesar de só haver um ordenado na família, organizar as idas e vindas de todos com um carro e um passe, levantar cedo ao Sábado para conseguir levar os miudos à natação, participar nos projectos que as escolas vão pedindo, e fazer jantares e almoço para o dia seguinte todos os dias, já me sinto bastante competente. Exausta, acabada, liquefeita, não-super, mas competente.

Super, super, só quando apanho uma molha enquanto carrego o Luis e levo o Pedro pela mão. E chego a casa a coxear por causa de uma bolha no calcanhar. Como ontem. Foi uma bela massagem ao ego, sentir-me assim, super. Estava a precisar.

22 de outubro de 2007

"Vestir o bebé"

O Luis nasceu com o destino traçado: ser pendura. Um irmão apenas 2 anos mais velho exige mãos livres. E para alcançar este feito de andar pela rua com os dois ao mesmo tempo adiquiri no último ano o marsúpio da Red Castle, um sling da Rosa Pomar, outros feitos pela minha avó, e ainda um do Clube do Pano que uso ultimamente por distribuir melhor os 12 quilos de um bebé gordo e feliz. Recomendo-os a todos, cada um melhor para uma ocasião ou fase diferente.

Foi assim, por necessidade, que descobri o babywearing. Hoje tenho pena de não ter descoberto antes, com o Pedro. Porque acalmava o Luis quando chorava, porque criei laços ao carregar o Luis que não criei ao empurrar o Pedro no carrinho, porque me fez descobrir a simplicidade na maternidade - tão escondida, hoje em dia, no meio de tantos acessórios inúteis -, porque existem padrões bonitos que me fazem sentir feminina - afinal não sou apenas mãe - mas, acima de tudo, porque é muito, muito prático. Não só para quem gosta de caminhadas pelo campo. É também a solução para a cidade: para fugir rapidamente de um centro comercial pelas escadas rolantes porque não é preciso esperar pelos elevadores, para ir ao café a pé sem ter que colocar o carrinho no meio da rua por causa dos carros mal estacionados e dos postes de sinais de trânsito plantados no meio do passeio, para ir ao supermercado sózinha e só levar o carrinho das compras, para carregar sacos do carro para casa, para dar uma corrida rápida e escapar de uma molha, para segurar um guarda-chuva que nos protege aos dois ao mesmo tempo, para me equilibrar no metro ou no autocarro até chegar aos lugares reservados. E para dar a mão ao mais velho, claro.

Assim, todos os dias, quando enrolo o Luis junto a mim e saio para a rua, sinto-me dona d'A Solução. Apetece-me partilhá-la. Fazer um workshop. No mínimo, escrever um post.

Só há uma coisa que ainda não sei. É traduzir babywearing. "Vestir o bebé" induz em erro. "Usar o bebé" é dúbio. "Usar o bebé como acessório" é longo demais e não me agrada a ideia subjacente de bebé-objecto. Faltam-nos palavras. Oxalá a falta de verbo em português não limite a acção por estes lados.

8 de outubro de 2007

Comunhão

Quando me sabem de volta aos transportes públicos, e com o Luis como companhia, ouço frequentemente "Coitadinha...". Não sei como explicar que no princípio do mês, ao comprar o passe, sinto quase como se comprasse a minha carta de alforria. O carro é como uma prisão. Sem dúvida mais confortável que um autocarro, mas estar dependente dele oprime-me. O estacionamento, as bichas, angustiam-me. O carro torna-me a vida cinzenta. No autocarro sinto-me em comunhão com a cidade. Faço parte dela. Posso mostrar ao Luis as luzes de Natal que não tardarão a aparecer no centro da cidade ao invés de tentar evitar o trânsito pela periferia. Posso ler as capas dos livros de quem se senta à minha frente, de cada pessoa nova, ao invés dos cartazes publicitários de sempre expostos pela rua. Sinto-me mais exposta à vida... acho que é isso.

4 de outubro de 2007

90

Desde segunda que apanho o 90 para ir trabalhar. Na verdade, há muitos anos que apanho o 90, intervalado por periodos de outras carreiras, de metro, de carro, dependendo das moradas que me têm acolhido. Mas o 90 é dos meus meios de transporte preferidos e fico feliz quando a vida se conjuga de modo a que faça parte do meu dia a dia. É o único que faz a ligação Saldanha - Sta. Apolónia. O único que sabe que, chegado à Praça do Comércio, existe destino à esquerda. Que nem toda a gente quer ir para o Cais de Sodré. Ou que, chegado à Fontes Pereira de Melo, há quem queira ir em frente.

Há anos atrás reduziram o número de carreiras. Agora, o 90 só trabalha em part-time de manhã e ao final da tarde. E, ouvi dizer, até ao final do ano será terminado o percurso. Não serve de nada escrever à Carris e testemunhar o meu carinho pelo 90, a falta que me fará. Quando o fiz sobre o trajecto final do 108, que foi abruptamente amputado, responderam-me que uma lotação de 30% não justificava a sua manutenção. Eu acho que vinte e poucas pessoas por cada autocarro, quase 100 pessoas por hora, é desconsiderar muita gente. Mesmo que tanta gente sejam só 30%.

1 de outubro de 2007

Área de Broca

Cheguei à conclusão que tenho um problema na Área de Broca. Eu até compreendo bem as coisas, modéstia à parte. Mas verbalizá-las não é comigo. Escrever sim. Mas falar... Devem ser processos neurológicos diferentes, isto de organizar discurso escrito e organizar discurso falado. Tenho que ir ler o Damásio.

Tudo para dizer que o pesadelo de dia 27 já passou. Não estive brilhante, nem nada que se pareça. Pelo menos não pelos meus padrões. Sou melhor do que foi a minha prestação pública. Gostava era que estas provas fossem escritas. Mas lá deu para o doutoramento summa cum laude, que até seria coisa de orgulho, não fosse isto tudo política.

Ainda não sinto nada. Nem alívio, nem contentamento. Pareço um daqueles condenados institucionalizados que não sabem viver cá fora ao fim de tanto tempo encarcerados. No dia seguinte fartei-me de chorar. Fiquei com o dia a dia desprovido de sentido.

Mas hoje, ah hoje!, colhi os primeiros benefícios desta minha graduação. Fui pedir o certificado e, apesar de ser a mais mal vestidinha da fila, com umas calças de ganga desfiadas, blusa da feira e filho mais novo à tiracolo, era só senhora doutora para cá e senhora doutora para lá. Conquistei o respeito de um guichet de atendimento. Até me deu vontade de rir. No banco só não recebo olhares paternalistas quando o João me acompanha dentro do seu fato cinzento. Tenho que lhes mandar uma cópia do certificado. Ou então tenho que passar a vestir-me melhor. Assim é o mundo.

E, só para finalizar, a história realmente digna de ser contada, no fim desta minha odisseia, foi ter recebido no dia 28 a notificação oficial da FCUL para comparecer a provas no dia 27. Assim é o país.