31 de janeiro de 2008

Tradição

Hoje, eu e o João, fazemos anos de casados. Como é costume, nenhum de nós se lembrou. Fomos alertados pelos parabéns de terceiros. Há um certo conforto nesta tradição de esquecimento. Suspeitarei que algo de errado se passa no dia em que for surpreendida com uma prenda a assinalar a data.

Fiz as contas aos anos. Só sei quantos são se andar para trás. Casámos dois anos depois do início de namoro. Começámos a namorar no ano em que morreu o meu amigo Luis (eu, ansiosa por chegar ao trabalho depois do Verão para lhe contar a novidade, fui recebida pela notícia e os olhos inchados de todos os que chegaram antes de mim). O Luis morreu no primeiro aniversário da queda das torres. E, bom, sei que as torres caíram em 2001 porque a essa informação não se escapa. Faço assim as contas: 2001 - 2002 - 2004! Para 2008, são quatro anos.

Claro que agora que fomos lembrados e as contas foram feitas, já lhe disse que a este ano corresponde uma prenda de fruta ou flores. Ele sugeriu 1Kg de pêras. Sinto também um certo conforto nesta tradição de romantismo entre nós.

23 de janeiro de 2008

A teoria da relatividade aplicada

Não gosto de ficar em casa. O teletrabalho, o "fazer as minhas horas", é algo que me horrorisa. Gosto de sair, ver os colegas, almoçar acompanhada.

Para meu azar tenho um trabalho com uma flexibilidade de horário tal, onde ficar em casa não só é fácil como, por vezes, encorajado, que aqui não há secretárias que cheguem para todos, e os pontos de rede também têm que ser partilhados. Calha-me sempre a mim, portanto, "estar de baixa" quando é preciso.

A passagem do Varicella zoster lá por casa gerou dessas necessidades. Duas semanas de retiro e isolamento, em que vejo o tempo a passar veloz através da janela, mas lento e arrastado do lado de dentro. E o pior é que não é apenas sensação. Ontem saí, finalmente. Deixei a minha casa ainda com a árvore de Natal na sala e encontrei cá fora a Primavera.

Foi como viajar para o futuro.

14 de janeiro de 2008

Finanças

A repartição de finanças do Lumiar renovou-se. Um Verão inteiro de obras, que eu desse conta, e agora surge envidraçada, com mobiliário claro, coordenado, e em tons de azul. Muitas plantas, também, como que a dizer que o ar ali, assim como tudo o mais, qual Sir Galahad, é puro. As paredes e portas são decoradas com palavras de ordem contra a evasão fiscal.

Depois de pagar os 3 euros e pouco pela caderneta de recibos verdes entregam-me uma folha A4. "É o recibo?". "Não, é a referência da caderneta. Mas quer recibo, é?".

10 de janeiro de 2008

Idade

Fui ao médico. Uma panóplia de exames para fazer, não porque haja suspeita de alguma maleita, mas porque "já estás em idade de ir controlando estas coisas". São comentários destes que nos fazem perceber que afinal não temos bem a idade que pensávamos que tínhamos. Há alguns marcos ao longo da vida. Lembro-me que o primeiro baque foi quando me apercebi que as candidatas a Miss Portugal eram já todas mais novas do que eu. Depois, de repente, deixa-se de ter Cartão Jovem. E agora já estou em "idade de ir controlando estas coisas".

É que, na minha cabeça, eu ainda ando de Kilt xadrêz. Ainda não sei bem o que se passa no mundo. Algumas roupas que me sugerem são "assim muito à senhora". E ainda me apetece comprar livros da Alice Vieira.

Numa conversa nada a propósito, com uma colega estrangeira de visita ao laboratório, dizia a Clara "I don't think we ever grow up". Pois. We just get old.

4 de janeiro de 2008

Cicatrizes

"Quando alguma coisa falta pode ser acrescentada". Esta frase está escrita numa parede de um prédio ao lado do meu. Não é graffiti. Faz parte de uma instalação alternativa qualquer que por ali houve. A instalação foi temporária, mas a frase é perene. Sempre que passo, olho-a, leio-a, e há ali qualquer coisa que trago para casa. É um modo de vida. Pode significar a diferença entre tornarmo-nos pessoas amargas a maldizer a nossa condição, ou felizes com a vida e achar que todos os males têm remédio. Gosto de a ler, amiúde. Tento que seja um lema.

Começo assim para dizer que costumo ler aquilo que vejo pintado. Nem sempre é só tinta a conspurcar paredes. E acho saudável fazer o esforço por ler o que alguém quiz dizer. Pode acrescentar-nos alguma coisa ao dia, se não à vida. Volta e meia tenho esta conversa com pessoas, mas geralmente não partilham o meu ponto de vista. Há uns tempos tive esta discussão com um amigo a quem enviei esta foto e lhe dizia que me perguntava porque é que existe esta necessidade generalizada de exprimir publicamente o amor. Um amor mais efémero do que os nomes que deixa escritos, argumentava ele, com razão. Mas talvez seja essa efemeridade a razão de o deixar gravado.

Tive esta epifânia, hoje ao almoço, enquanto conversava com o meu pai. Ele falava sobre um documentário em que se discutia o significado evolutivo das cicatrizes. Houve tempo e oportunidade para que a regeneração de tecidos fosse mais perfeita. Para que se conseguisse a elasticidade e pigmentação de uma pele virgem. Mas não. Desenvolvemos um processo de cicatrização que deixa marcas. E evolutivamente faz todo o sentido. São memórias que ali estão. Memórias dos sarilhos em que não nos devemos meter se queremos sobreviver. Memórias do que nos magoa. Do que devemos evitar. E de repente, percebi, que o amor público pelas paredes da cidade, pelos bancos, pelas troncos de árvores, são cicatrizes também. Que se enchem de significado quando o amor passa. E nos servem de lição quando as relemos.

Começo a olhar as cicatrizes de forma diferente, desde hoje ao almoço. Sempre achei que as de "guerra" continham histórias, mas agora percebi que todas elas são memórias dignas. Quem prestar atenção à coluna da direita verá, pelos meus links, que vivo a frustação dos meus filhos não terem nascido de parto natural, que sinto as duas cesarianas por que passei quase como uma violação da minha condição de fêmea. Mas hoje olho a minha cicatriz púbica, cujo o meu tipo de pele ainda exagerou ao formar queloide, e tenho pena que não se note quando uso biquini.