4 de janeiro de 2008

Cicatrizes

"Quando alguma coisa falta pode ser acrescentada". Esta frase está escrita numa parede de um prédio ao lado do meu. Não é graffiti. Faz parte de uma instalação alternativa qualquer que por ali houve. A instalação foi temporária, mas a frase é perene. Sempre que passo, olho-a, leio-a, e há ali qualquer coisa que trago para casa. É um modo de vida. Pode significar a diferença entre tornarmo-nos pessoas amargas a maldizer a nossa condição, ou felizes com a vida e achar que todos os males têm remédio. Gosto de a ler, amiúde. Tento que seja um lema.

Começo assim para dizer que costumo ler aquilo que vejo pintado. Nem sempre é só tinta a conspurcar paredes. E acho saudável fazer o esforço por ler o que alguém quiz dizer. Pode acrescentar-nos alguma coisa ao dia, se não à vida. Volta e meia tenho esta conversa com pessoas, mas geralmente não partilham o meu ponto de vista. Há uns tempos tive esta discussão com um amigo a quem enviei esta foto e lhe dizia que me perguntava porque é que existe esta necessidade generalizada de exprimir publicamente o amor. Um amor mais efémero do que os nomes que deixa escritos, argumentava ele, com razão. Mas talvez seja essa efemeridade a razão de o deixar gravado.

Tive esta epifânia, hoje ao almoço, enquanto conversava com o meu pai. Ele falava sobre um documentário em que se discutia o significado evolutivo das cicatrizes. Houve tempo e oportunidade para que a regeneração de tecidos fosse mais perfeita. Para que se conseguisse a elasticidade e pigmentação de uma pele virgem. Mas não. Desenvolvemos um processo de cicatrização que deixa marcas. E evolutivamente faz todo o sentido. São memórias que ali estão. Memórias dos sarilhos em que não nos devemos meter se queremos sobreviver. Memórias do que nos magoa. Do que devemos evitar. E de repente, percebi, que o amor público pelas paredes da cidade, pelos bancos, pelas troncos de árvores, são cicatrizes também. Que se enchem de significado quando o amor passa. E nos servem de lição quando as relemos.

Começo a olhar as cicatrizes de forma diferente, desde hoje ao almoço. Sempre achei que as de "guerra" continham histórias, mas agora percebi que todas elas são memórias dignas. Quem prestar atenção à coluna da direita verá, pelos meus links, que vivo a frustação dos meus filhos não terem nascido de parto natural, que sinto as duas cesarianas por que passei quase como uma violação da minha condição de fêmea. Mas hoje olho a minha cicatriz púbica, cujo o meu tipo de pele ainda exagerou ao formar queloide, e tenho pena que não se note quando uso biquini.

1 comentário:

Manuel Rocha disse...

É saudável lé-la. Disso não tenho dúvidas.

Quanto às cicatrizes, elas são de facto sinais de passagem. Deixam marca de onde estivemos. Mas só algumas se sedimentam como MEMÒRIA. A maioria são apenas lembrança.